TEM QUE SE DAR UM NOME A ESSA TRISTEZA - ROSA SILVÉRIO
Tem de se dar um nome a esta tristeza
tem de se pôr um coração,
um olho de gato ou de serpente,
tem de se pôr um vestido
tacões
maquilhagem
e levá-la a passear
embebedá-la
e socorrê-la numa esquina
ou num motel de má morte.
Tem de se golpear esta tristeza,
dar-lhe lategadas,
ensinar-lhe quem manda,
amarrá-la a um poste eléctrico
ou desfolhá-la numa tarde de Setembro.
Tem de se saber que o mundo
é uma bagatela ou uma sombra larga
disposta a devorá-lo todo,
a tragá-lo todo num sopro
ou num baque.
Tem de se entender que as coisas
têm um lugar geográfico, um nome,
uma textura exacta e uma forma
e que dentro dessas coisas
está despida e em silêncio
a tristeza,
como uma corrente de ar frio
ou como o mar quando adormecem as ondas,
como um campo solitário,
um rancho de tabaco às escuras
ou Matanzas às cinco da tarde.
Tem de se saber que a tristeza existe
como existe a casa, a taça de chá,
o relógio, a árvore, as recordações
ou a fotografia da minha avó
com uma blusa cheia de pássaros brancos
e um olhar que me faz recordar
todos os mortos que teve de chorar
a minha pobre avó.
Tem de se saber que a tristeza não só existe
como também tem o seu espaço,
o seu recanto no interior de cada coisa,
o seu próprio melisma, as suas exigências
e até os seus horários
e que por vezes nos cansamos,
nos fartamos de tanta submissão,
de tombarmos numa cama,
de tomarmos um frasco de comprimidos,
de pensar em sogas, em pontes
ou em desafogos sentimentais,
e de repente levantamo-nos
e dizemos caralho
e decidimos alterar a ordem do mundo,
dar um nome à tristeza,
etiquetá-la,
mandá-la à merda,
e seguir em frente,
sempre em frente,
como o que vai no comboio
ou num motociclo,
ainda que o vazio esteja no lugar de sempre,
ainda que nada seja como antes,
ainda que o amanhecer não seja luminoso,
ainda que a tristeza jamais desapareça.
Grafite de Eduardo Kobra @eduardokobra
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